segunda-feira, 21 de dezembro de 2009


" O Leão de Sete Cabeças "

" Essa é a segunda vez que escrevo uma biografia de um filme. Quando eu escrevi a biografia do “Terra em Transe”, 1965, a pedido de uma grande revista local , a matéria não foi publicada. Digo isso porque acho interessante cada vez mais o público saber como se fazem os filmes do terceiro mundo. O público do terceiro mundo continua recebendo uma massa enorme de informação sobre o cinema euro-americano e pouco sabem do seu próprio cinema. Explico isso para deixar bem claro o motivo que me levou do Brasil até a próxima África, longínqua apenas em nossa imaginação desinformada.

Fui fazer o filme na próxima Africa porque percebi que estava na hora de começar a romper com o auto isolamento em que vivem os vários cinemas do terceiro mundo. E o Titulo “O Leão de Sete Cabeças” nasceu simplesmente disto: o mesmo cinema e várias manifestações, sete, setenta ou setecentas.

Este filme nasceu no Brasil há três anos sobre forma de peça teatral que pensei em dar de presente para o Zé Celso Martinez. Depois vi que não dava pra teatrólogo e deixei de lado. A peça se perdeu e só me lembrei depois de algumas idéias. Como os originais sumiram mesmo tentei re-escrever, mas aí a coisa foi nascendo com jeito de filme e quando dei por mim estava fazendo um filme que se passava na África. Em julho de 1969, em Paris , Claude Antoine me perguntou se eu não queria fazer um filme. Eu já estava com idéia para botar para quebrar no terceiromundo e ai me lembrei do embrião do filme africano. Deus escreve certo por linhas tortas e ai eu viajei a Roma em busca de Gianni Amico; era preciso escrever um roteiro das 7 paginas resumidas que consegui datilografar.

Em Roma antes mesmo do roteiro não faltava produtor italiano para co-produzir com Claude Antoine. O primeiro foi um tal Bregni , distribuidor de “Antonio das Mortes”.
Roma cinematográfica não é mais Via Veneto e Cinecitta: isto existe como sucursais de Hollywood mas já em fim de carreira. O conde Visconti, que ficou meu chapa me propôs em seguida produzir qualquer filme que quisesse, mas como os sócios deles me lembraram o Bregni eu preferi correr fora das luzes da Broadway. Valeu a intuição: voltando da África o conde me falou horrorizado do trambique que os sócios dele deram nele com seu filme “O Crepúsculo dos Deuses”. Eu sabia de outra Roma cinematográfica, renovada nas mãos de Gianni Barcelloni, o produtor jovem, inteligente, ambicioso, sem meias palavras. Barcelloni nem leu o roteiro que eu tinha escrito com Gianni Amico: pegou um carro a viajou a noite toda para Roma, pro festival de Veneza. Chegou e assinou comigo e com Claude. E no contrato sem que eu pedisse havia a clausula mágica que a maioria dos diretores imploram e não conseguem:“O diretor tem inteira liberdade sobre o roteiro, o estilo, a direção, a banda sonora, os diálogos, a escolha dos atores, da equipe técnica da montagem e do conteúdo do filme.”

No dia 15 de setembro peguei um avião de Paris para Dakar. Ia pro desconhecido com um roteiro debaixo do braço e sem saber em que pais ia filmar . Em Dakar estava Ousmane Sembembe, o grande cineasta africano, autor de “Le mandat” os mais baiano de todos os filmes feitos até hoje. Ousmane Sembembe é o único diretor capaz que eu conheço de filmar um romance baiano de Jorge amado. E eu disse isso em paris para Jorge: a picardia, a baianidade, o espírito popular de Ousmane Sembembe é o correspondente cinematográfico que eu conheço mais próximo de Jorge. Para “Terras do Sem Fim” , não, que este eu pretendo refilmar um dia. Mas para “Gabriela”, “Dona Flor, para “Quincas”, para “Tenda dos Milagres”, “Velhos marinheiros”, para “Pais do Carnaval”, o diretor é Ousmane Sembembe, senhores produtores brasileiros. E Sembembe não se assustou quando disse isso a ele na sua casa beira-mar em Dakar: deu uma risada e foi buscar pra mim a tradução francesa de “Mar Morto”.

Sembembe começou logo a brigar para eu filmar no Senegal. Mas eu botei a velha intuição de dez anos para funcionar e vi que no Senegal não dava pé. Então me disseram pra eu ir filmar na Guiné – Konakrie. Aí eu vi que a burocracia do lado de lá ia se contrabalançar com a censura do lado de cá. Fui a uma livraria e comprei um mapa da áfrica e fiquei dez dias trancado num quarto de hotel, decorando o mapa e estudando os países, reformando o roteiro de oitenta páginas que terminei pra cinco ou seis páginas, com algumas indicações, como sempre fiz e faço cada vez mais. Afinal se ia filmar em som direto praquê escrever diálogos convencionais que apenas atravancam a história e limitavam o desenvolvimento do personagem? E depois, dentro daquela áfrica caótica, meu roteiro tinha que ser móvel, adaptável a qualquer condição de produção.
Bati os olhos numa revista africana. Brazzaville. Um grupo de jovens oficiais nacionalistas tinha dado um golpe de estado e instalado um regime ante-Colonialista, e tendências socialistas ainda vagas. Li O ato Institucional da Revolução e lá tinha um artigo que me fundia a cuca: “ Fica abolida a censura artística nesse novo regime, etc... etc...”

Agora tem o seguinte; não sei se é mais difícil de filmar em Brazzeville em transe ou em Mato Grosso. Quando cheguei lá ainda não tinha decretado um novo Estado Socialista. Tudo era indefinido, as disputas de varias tribus pelo poder superavam as querelas, Paris-Moscou-Pequim-Washignton pela posse daquele pequeno congo dividido pelo rio congo daquele outro gigantesco congo do psicodélico Mobutu. Uma constante ameaça de guerra de Mobutu pairava do outro lado e vários golpes de estado se urdiam. Cai num formigueiro pensando que estava entrando em um lugar calmo. Com vinte dias vi que não era possível filmar e telefonei pro Claude dizendo que indenizava os gastos inicias da produção e desistia do projeto. Mais Inês era morta, a equipe italiana já voava com o material desesperada. Barcellone é previdente e me enviou um gênio na equipe: Giancarlo Santi, diretor de produção de super espetáculos e que vinha de terminar um filme que tinha adorado, “Era Uma Volta do Oeste”, do grande Sergio Leone. Quando Santi entrou no meu quarto eu disse:

- Não adianta ter chegado. Aqui é impossível filmar.
- Cadê o roteiro ? – me pediu Santi. Dei a ele as sete paginas numeradas. Ele examinou dez minutos e depois me respondeu:
- Fique tranqüilo. Isto é uma brincadeira. Vinte dias.

Diretor de produção é o seguinte: um cara altamente especializado em cinema que pega um roteiro e planifica como e quando deve ser filmado nos lugares que o diretor escolhe com o diretor de fotografia. Se chove no dia previsto você vai filmar num interior; se os extras não chegam na hora, você vai filmando um primeiro plano de um ator até os extras chegarem; na hora da comida se come, se descansa, se retoma o trabalho. Depois tem sempre um carro pros atores, outros pros técnicos, um caminhão pra trazer o material. Depois todo mundo janta na hora e vai dormir na hora e acorda na hora. De noite o diretor de produção examina o trabalho do dia seguinte, chama o diretor e diz se vai ser possível ou não filmar a cena. Se for imprescindível, ele passa a noite toda acordada e no outro dia se filma. Diretor de produção não assiste as filmagens; vai e volta no carro dele, grita com a equipe técnica, impõe disciplina nos atores histéricos, diz ao diretor pra andar depressa mas pra fazer um filme bom, não se castrar, pedir tudo que for preciso. Parece fácil o esquema de trabalho, mas executar é difícil. Um plano de produção não depende só do plano: depende do dinamismo do diretor de produção, de sua calma, sua energia e sua previdência. No Brasil ha bons diretores de produção mas como Santi eu nunca tinha visto.

E foi por causa dele que consegui filmar em vinte e dois dias uma quase super –produção. Por causa dele e por causa de Miguel Samba, um congolês musico, poeta e ex-militar que o departamento de cultura do Estado botou a minha disposição. Santi e Samba superaram rapidamente os problemas raciais e se puseram lado a lado na produção. A equipe italiana era ótima: o fotografo era Gui do Cosulich, que fotografou no Brasil “O Desafio”, Macunaíma”, e “Brasil ano 2003” isto é um fotografo típico do cinema novo, gênero Dib Lufti ou Afonso Beato. Os atores italianos, todos de primeira: Giulio Brongni vinha do Piccolo Teatro de Milano, Rada Razamov, vinha de pequenas pontas em busca de uma chance e Gabrielle Tinti vinha de Norma Benguell, isto é, falando o português, integradíssima comigo e com Hugo Carvana e com André meu assistente e o som o fantástico “... Ventura” no comando de som. De Berlim veio o simpático Rene Koldhoffer, que tinha visto no filme de Visconti, velho experimentado em trinta e cinco peças de Brecht, esclerosado de tanto academicismo, que quase morre de alegria em trabalhar improvisando, longe de regras e preconceitos. E da França veio o maravilhoso e desastrado Jean Pierre Leaud que levou uma boa surra minha antes de começar as filmagens porque teve uma crise de vedetismo no restaurante e começou a cortar o peito com uma Gilette, gritando:

- Quero filmar, quero filmar logo porque tenho muita energia e não posso viver sem uma câmera diante de mim!

Ai eu meti a mão na cara dele, dei-lhe uns dez tapas e mandei o Santi devolver ele pra Paris(-). Os africanos ficaram apavorados, riam, corriam e chamavam a policia porque pensavam que o filme já tinha começado, nunca antes haviasido feito filme em Brazzaville. Quando Leaud viu que ia embora mesmo, ficou dócil. Eu mandei ele pedir desculpas a todos os funcionários do Hotel Cosmos e deste dia em diante a paz reinou na equipe, até o último dia quando Leaud deu outra de vedete mas aí ninguém ligou. Mas ele, um ator genial, um caráter de ouro, compreendeu que em cinema de terceiro mundo não tem hora nem vez para complexo de Marlon Brando.

Começamos a filmar num lugar que era mistura de milagres com candomblé da Bahia. Uma comunidade mística chamada Croix Goma, onde um africano cristianizado criou um sincretismo religioso. Começamos pelo mais difícil, botando os atores para representar dentro dos ritos, entrando com a câmera, a equipe em pânico, o os atores surpreendidos porque não tinha o roteiro, eu gritando na loucura do improviso: tenho impressão que filmar de improviso é como Garrincha entrando na área com quatro adversários na frente e a torcida gritando, Gol, Gol. Eu em principio uso a câmera no tripé ou na mão, fixa ou no carrinho e lente numero tal. O pessoal da fotografia começa a trabalhar aí eu chamo meu assistente e digo:

- Vai dizer praquele ator que venha lá de cima devagar e depois diga para aquele outro para entrar naquele lado correndo e diga para um que quando eles se encontrarem ele ai fala com ele, e etc...

Depois que o assistente explica as coisas eu vou ver os atores e explico tudo ao contrario e ai faço um dialogo com cada um deixando eles inventarem bastante para ficar a vontade, o Ventura, imperceptível já esta com o microfone na boca do ator e só me diz se o cara deve falar mais alto ou mais baixo que ali tem muita interferência de ventos ou ruídos, ai o pessoal da fotografia diz que esta tudo pronto, ai eu perco a cabeça e manda filmar sempre rindo e gritando:

- Vai de qualquer jeito que depois o Escorel resolve na montagem!

Nem sempre da certo - raras vezes da certo na primeira, mas essa correria toda serve para esquentar a equipe e botar cada um participando no filme do jeito que pode. O cinema velha é exatamente desenhar tudo. Ficar iluminando, cansando os atores com explicações freudianas e sociais, exigindo objetos inúteis e depois filmar como se estivesse numa missa. Eu, mas isto não é conselho pra ninguém seguir, prefiro filmar a alma dos atores, isto é filmar quando ele estão certos de que estão criando no momento de filmar, embora antes de filmar não soubessem nada do que ia acontecer. Mas acontece, e por isso os atores e fotógrafos topam meu método sem complexos, que eu também não sei como vai ser filmado a cena prevista. Carvana, Othon Bastos, Pitanga, Geraldo D`el Rey e outros já conhecem este método e vão logo dizendo:

- Deixa o Glauburu em paz que já está pra começar.

Na África, Carvana serviu pra esfriar um pouco os atores contando histórias desse tipo. No terceiro dia a turma toda estava a quilômetros da selva sem protestar e perfeitamente integrados com os atores congoleses, Baiak e o extraordinário André Sogolo que, vencendo o racismo e a timidez desabrochou com graça e leveza.

O “Leão de Sete Cabeças é um filme adaptado livremente do livro de Apocalipse, da Bíblia, me desculpem a pretensão. Mas eu disse “livremente” , isto é: a estória de uma besta coberta de ouro que domina todos os povos, tribus e nações e a estória das bestas auxiliares e das bestas dominadas que se revoltam contra a besta de outro da violência. Simples como poderia inventar um menino, Homero ou Jorge Luiz Borges. Entre bestas circula um padre desgarrado do catolicismo tradicional que tenta, em paroxismo crescente, separar o joio do trigo . O resto só vendo para gostar ou detestar como foi como “Terra em Transe.” Filmei setenta cenas em cores, algumas fixas outras em movimento, algumas realistas, outras poéticas, etc... A música e os diálogos foram gravados na hora e depois , em Roma passei dois meses com Eduardo Escorel selecionando, cortando e juntando as cenas. Durante a montagem eu inverto meu processo de trabalho. Com Escorel eu penso, medito, escuto horas, estudo a fundo as teorias da montagem dialética de Eisenstein e deixo o filme ficar em Maria até que, (perdoe o termo) ele se auto) determina como estrutura dramática, isto é como narrativa ou expressão que vai nascendo da exposição de uma cena a outra. Cenas ótimas de filmagem vão para a lata de lixo. Cenas ruins de filmagem ganham um valor extraordinário. Depois no estúdio de som, misturando diálogos, ruídos e musica, a chamada mixagem, chega a hora da verdade. Ali o filme se decide, ali eu boto pra quebrar, tomo emprestado as lições do mestre Marlos Nobre, fabrico a obra em cima das imagens, fábrico também o silencio. Uma hora para mixar um rolo de dez minutos vale também três dias para mixar outro porque o cinema moderno é imagem e som e pra entender um filme hoje é preciso VER E OUVIR.

“O Leão” está pronto. Meu juízo? Uma montagem de “Deus e o Diabo, com a banda sonora de “Barravento”, com o radicalismo de “Terra em Transe”, com a poesia de “Dragão” e um algo a mais que a África lhe dá.

Quando eu vi a primeira projeção estava tranqüilo, achando que depois que se caminho seu caminho se autodetermina a critica pró ou contra não lhe altera mais. Minha Bíblia são as teorias do velho imortal Eisenstein e outro dia sonhei com ele."

( texto escrito por Glauber Rocha sobre a realização de seu filme " O leão de sete Cabeças". )

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